21 de dez. de 2009

EIXO 2 ALFABETIZAÇÃO Parte 3

Para refletir

Alfabetização: acesso a um código ou acesso à leitura? - Magda Soares

Até recentemente foi consensual o sentido atribuído aos conceitos de analfabeto, analfabetismo, alfabetização: analfabeto - o que não sabe ler e escrever; analfabetismo - o estado ou condição de quem não sabe ler e escrever; alfabetização - o processo de ensinar a ler e a escrever.
Progressivamente - e particularmente ao longo da última década - vem-se revelando uma tendência a qualificar e precisar esses conceitos, ampliando seu significado. Assim, tanto na mídia quanto na literatura educacional, intensificam-se as discussões sobre um analfabetismo funcional, sobre o analfabeto funcional, multiplicam-se as críticas a uma alfabetização que, embora ensine a ler e a escrever, não habilita os indivíduos a fazer uso da leitura e da escrita nem lhes facilita o acesso ao material escrito.(...)
A alfabetização significando que a esta cabe não apenas ensinar a ler e a escrever, mas também desenvolver habilidades de uso social da leitura e da escrita e gosto pelo convívio com material escrito. Ao mesmo tempo, e como conseqüência, vai-se modificando a metodologia da alfabetização, passando a defender-se que essa se dê não por meio das tradicionais cartilhas, voltadas exclusivamente para a mecânica da leitura e da escrita, mas pelo convívio do alfabetizando com o material escrito que circula na sociedade, em diferentes gêneros e diferentes portadores. Como conseqüência, enfatiza-se cada vez mais a importância das bibliotecas públicas e escolares, do acesso ao livro, aos jornais, às revistas, da multiplicação de eventos que levem o alfabetizando à participação em práticas reais e não apenas escolares de leitura. Essa nova concepção de aprendizagem da leitura e da escrita é que faz surgir no vocabulário educacional o termo letramento, criado para designar o estado ou condição de um indivíduo que não só sabe ler e escrever - não só é alfabetizado - mas também sabe (e tem prazer em) exercer as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive - é letrado.
Entretanto, contraditoriamente, este novo conceito de aprendizagem da leitura, estreitamente relacionado com práticas de leitura, com a formação de um verdadeiro leitor, vem convivendo com a persistência do conceito restrito e tradicional de aprendizagem da leitura como a mera aquisição da tecnologia da escrita, como apenas formação de um decodificador da escrita. Um conceito para o qual parece ser suficiente que o indivíduo aprenda a decodificar rótulos em produtos de consumo, indicação de trajetos na lateral de ônibus, fichas de cadastro em empresas... (...)
Discute-se a questão exclusivamente no quadro de uma concepção de analfabetismo como o estado ou condição de quem não sabe ler e escrever, não mencionando em nenhum momento o acesso à leitura e a formação do leitor como objetivo central, não discutindo em nenhum momento as precárias condições de possibilidade de leitura propiciadas a uma população de 170 milhões de indivíduos a que apenas 2.008 livrarias dão acesso ao livro - uma livraria para cada 84.400 habitantes! em um país em que menos de um quarto das escolas possui biblioteca! Citam-se como iniciativas contra o analfabetismo dignas de menção apenas aqueles programas governamentais ou da sociedade civil voltados exclusivamente para ensinar rapidamente a ler e a escrever, omitindo aqueles outros que se voltam para formar leitores, em atividades de socialização do material escrito e de desenvolvimento de práticas de leitura. Não se percebe que de nada vale a aquisição da tecnologia do ler e do escrever se essa aquisição não vier acompanhada de programas que facilitem o acesso ao material escrito e incentivem a leitura e a escrita.
O que explicará essa convivência contraditória de uma concepção de alfabetização como formação de leitores com uma concepção de alfabetização como formação de meros decodificadores da língua escrita? Talvez a persistência desta última concepção tanto no senso comum, que se revela freqüentemente na mídia, quanto no senso político, que se revela em muitos dos programas de alfabetização, se possa explicar ideologicamente: à medida que se vai vencendo o analfabetismo absoluto, é conveniente que não se eleve muito o nível de leitura da população, o que poderia representar ameaça a uma estrutura social que privilegia alguns e subjuga outros - meramente saber ler e escrever não dá ao indivíduo a possibilidade de luta, enquanto tornar-se leitor é conquistar um poderoso instrumento de conscientização e de formação para a verdadeira cidadania. Enfatizando uma alfabetização entendida como mera aquisição da tecnologia do ler e do escrever mantém-se a desigualdade, ou melhor, criam-se novas formas de desigualdade: esta já não ocorre entre analfabetos e alfabetizados, como tradicionalmente, mas passa a ser entre letrados e iletrados, entre os que têm condições de acesso à leitura, os que se formam leitores, e os que apenas aprendem a ler, mas a quem se nega a oportunidade e o direito às práticas sociais de leitura.
Magda Soares é membro do Ceale - Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG e uma das mais respeitadas pesquisadoras da área de linguagem e educação do país. É autora do livro "Letramento: um tema em três gêneros, da Autêntica Editora Comunicação & Marketing.
(FONTE: http://www.leiabrasil.org.br/textos/visualizartexto.aspx?id=442)

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