23 de dez. de 2009

Registro de Viagem

Algo sobre o Contexto Social e o Encontro de Formação


Um pouco de história da ONG Operação Resgate

É bom conhecer um pouco da ONG que viabilizou nossa primeira possibilidade de intervenção psicopedagógica. A intervenção teve dois encontros: um exclusivo com as professoras da ONG sobre Alfabetização e Letramento; e outro momento, que contou com a participação de professoras da cidade de Patos/Paraíba/Brasil. Trabalhamos 3 eixos que foram interseccionados: leitura, alfabetização e letramento, artes.
Tivemos a possibilidade de fazer uma intervenção especifica com a criançada com um tempo de contação de histórias e oficina de construção de brinquedos com sucata.

É impressionante o trabalho na Etiópia...a maneira como crianças pertencentes a uma realidade trágica e excludente, tem a possibilidade de se desenvolver, de serem vistos e servidos como pessoas humanas que são...

E também é de grande importância perceber - em tão pouco tempo - o processo que tem sido vivido pela comunidade local e suas crianças, que nos receberam com dança e música.

Para saber mais
http://operacaoresgate.org.br




22 de dez. de 2009

Propostas Práticas - ARTE com as crianças...


ALGUMAS PROPOSTAS PRÁTICAS - Muitas são as possibilidades práticas. Boas descobertas!

Os sentidos
As experiências sensoriais possibilitam o contato com os sentidos: olfato, visão, audição, tato e paladar. Este contato traz a criança de volta para si mesma, desenvolvendo assim a sua sensibilidade. Nas experiências sensoriais há sempre mais de um sentido em que se pode trabalhar.

1) O tato
O tato pode ser desenvolvido de diversas maneiras, utilizando-se, por exemplo de argila, areia, água, biscui, massinha pra modelar, terra, gesso, pintura com os dedos das mãos e com os pés.
É bastante interessante possibilitar que a criança, através do tato, diga qual a sensação que sente ao tocar determinados materiais, tais como: lixa, borracha, veludo, algodão, papel, metal, madeira, pedra.
O tato refere-se às sensações que sentimos em toda a extensão da pele e não apenas nas mãos. É importante que a criança tenha contato com várias texturas também nos pés e em outras partes do corpo.
A pele é o nosso maior órgão, é nossa fronteira de contato com o mundo. A pele e o sistema nervoso central provêm das mesmas células embrionárias, daí se vê a sua imensa relação com as sensações e emoções do ser humano.

2) A visão
É fundamental resgatar a curiosidade visual da criança e permitir que através dos seus olhos ela possa se enxergar. É interessante colocar à criança à frente de objetivos, e melhor ainda, de manifestações da natureza, como árvores, flores, montanhas, animais e pedir que olhe e veja (pois, muitas vezes olha-se mas não se vê), os detalhes, as características, as proporções daquilo que ela olha e depois representá-los através de uma pintura, um desenho, uma escultura.

3) A audição
Uma boa atividade é pedir que ela feche os olhos e comece a ouvir o mundo, dizendo o que ouve e quais as sensações e emoções que os sons trazem a ela. Também é interessante pedir que ela faça com uma folha de papel os mais diversos sons que conseguir. Ela pode, por exemplo, amassar, rasgar, movimentar a folha aberta de um lado para o outro.
Violet (1980) diz que sons e sentimentos combinam. E recomendado que se converse com as crianças sobre sons tristes, sons alegres, sons amedrontadores, sons de suspense. A própria voz, através dos diferentes tons, pode ser o instrumento para se perceber qual sentimento àquele tipo de som reflete.
Dentro da audição encontra-se o fundamental contato com a música: ouvir belas músicas, produzir músicas, ter contato com os mais diversos instrumentos musicais. A música tem ritmo e ritmo é um elemento organizador para a criança.

4) O paladar
O paladar refere-se a gostos e texturas que se sente com a língua, e que podem remeter à criança a várias sensações. É importante que a criança perceba a importância do paladar, que possibilita a ela sentir o doce, o amargo, o azedo, o salgado. É interessante que o professor leve até as crianças alimentos que as façam entrar em contato com os mais diversos sabores.

5) O olfato
O educador precisa permitir que a criança experimente vários cheiros, e as sensações e emoções que eles trazem. O cheiro está bastante associado à memória.

6) O sexto sentido: a intuição
Utilizar a fantasia, a imaginação é uma boa maneira de fazer com que a criança entre em contato com a intuição. Através da imaginação e da criatividade muitas atividades criativas podem ser realizadas.
Boas possibilidades para trabalhar essa intuição criativa são as produções realizadas com diversos materiais, a partir das sensações que uma música pode suscitar.

A literatura
Crianças precisam de histórias. Pode-se contar a história sem ler ou lendo. Pode-se também usar de recursos como tecidos que ganham vida, fantoches, massinhas de modelar, músicas, dobraduras. Cabe ao educador tornar o mais interessante possível a “contação” de histórias, para que a criança possa elaborar sentimentos, conhecer a si mesma, desenvolver-se moralmente.
Ao contar histórias é importante que o educador estimule a criança a escrever as suas próprias histórias, desenvolvendo assim o gosto pela leitura e a escrita.
Podem-se fazer saraus, onde as crianças leiam poesias de autores conhecidos ou poesias delas mesmas. Onde leiam textos de autores que gostem ou seus próprios textos, podendo assim se expressarem no mundo.

O teatro
O teatro permite à criança experenciar várias emoções. Elas mesmas podem ser autoras de suas peças, podem fazer os figurinos e cenários, entrando em contato com a magia do teatro, que contribui para sua formação integral.

Artes plásticas
As artes plásticas são abrangentes. Aqui será falado sobre escultura, pintura e colagens.
É interessante que as crianças tenham contato com grandes pintores, escultores. É importante estimula-las a apreciarem as obras de arte (que podem ser vistas pela internet e pelos livros) e ao mesmo tempo estimula-las a apreciarem as suas próprias produções artísticas, lembrando a possibilidade inventiva que o autor desprende para criar ou recriar a realidade.

1) A escultura
A escultura é uma maneira que a criança tem para expressar-se no mundo de forma tridimensional. Pode-se utilizar arame, gesso, madeira, metal, papel, argila.
É interessante o uso de ferramentas. Para que a criança possa se expressar de diferentes formas e desenvolver sua criatividade através da argila, é interessante que o educador dê a ela várias ferramentas, tais como espátula, colher, espremedor de batata, ralador de alimentos, lápis;

2) Colagens
A colagem é feita a partir de pedaços de vários materiais colados em uma base que pode ser papel, madeira, tecido, plástico. Podem ser utilizados para colagem materiais como papel (de todos os tipos), jornal, revista, tecidos, lantejolas, algodão, lã, barbante, celofane, lixa, folhas de árvores, plásticos, sementes, fitas, fósforos. São inúmeros os materiais que podem ser utilizados.
Através de tesoura e cola a criança elabora seu trabalho plástico. É divertido, trabalha a criatividade.

3) Pintura
Crianças adoram pintar, pois vêm nesta atividade a possibilidade do brincar. É interessante estimula-las a misturar cores e verificar as novas cores que surgem. A pintura pode ser utilizada de forma livre, ou com uma intenção pré-determinada pelo educador.
Pode-se pintar tanto com as mãos, tanto com os pés. Pintar com as mãos tranqüiliza a criança. Pintar com os pés não é tão comum, infelizmente, pois as escolas geralmente não permitem que as crianças vivenciam o prazer de andar descalças, o que desenvolve a sensibilidade.
Em relação à pintura com as mãos, pode-se usar vários tipos de tintas. A aquarela é bastante fluida, não permite o total controle por parte de quem pinta. Outras tintas podem ser utilizadas, tais como: têmpera, guache, tinta acrílica. Não é necessário utilizar as tintas já prontas, que são comercializadas em casas de arte (a seguir encontram-se algumas receitas).
Ainda com relação à pintura, é bastante significativo fazer a atividade de auto-retrato; varal e pregadores. É bastante útil utilizar um espelho, para que as crianças possam observar seus rostos antes de fazer o auto-retrato.

5) Cinema ou DVD
Assistir filmes é muito interessante. As crianças podem ser estimuladas a filmarem a si mesmas, podendo até fazer pequenos filmes, com figurinos, personagens, cenários, diretores, produtores.

6) Dança (Trabalho Corporal)
O trabalho corporal é muito importante para que a criança tenha consciência de seu corpo e de si mesma. A dança é um destes trabalhos e ocorre de forma prazerosa. Violet diz:
“Quando a criança se torna desligada de seu corpo, perde o senso de si própria bem como grande dose de força física e emocional. Assim, precisamos fornecer-lhes métodos para ajudá-la a conhecer seu corpo, sentir-se à vontade nele e aprender a usa-lo novamente”. (OAKLANDER, 1980, p. 151).

As crianças podem escolher as músicas que querem dançar e/ou o educador pode sugeri-las. Dançar é sentir-se livre, é sentir-se, realmente, criança.
Ainda dentro do trabalho corporal é interessante que a criança aprenda a sentir sua respiração.

O que precisamos "saber" sobre as crianças e o brincar...

1. O que não “sabemos” sobre as crianças...

“Cada criança reconstrói a sua própria inteligência e seu próprio conhecimento. Por exemplo, contar ou recitar o nome dos números, certamente, para a criança vem do mundo externo. Porém aprender a noção de números é algo muito diferente de aprender a recitar os nomes dos números. A noção de número é construída pela criança como um ato criativo, como uma multiplicidade de atos criativos.” (Jean Piaget, 1972, Conferência Criatividade: Psicologia, educação e conhecimento do novo)

“Se concordamos com Piaget que em todo o processo de conhecimento estamos sendo criativos (por criarmos estruturas para conhecer), talvez fosse mais adequada à preocupação com o planejamento de aulas plenas de situações novas a serem conhecidas, plenas de perguntas que desafiassem os alunos a sofrerem desequilíbrios cognitivos. E não a preocupação com o planejamento “formação para a criatividade”, mas o planejamento para as experiências de conhecimento.” – Profª Luiza Helena da Silva Chistov – Sobre a palavra criatividade: o que nos levam a pensar Piaget e Vygotsky.

2. Brincar

O brincar tem um lugar e um tempo. Para dominar o que esta fora é preciso fazer coisas, não só pensar ou desejar, e fazer coisas leva tempo. BRINCAR é fazer. (Winnicott)

O brincar é parte essencial do desenvolvimento da criança, a criança que não brinca não se desenvolve de forma plena. Winnicott (1975) afirma que é no brincar que a criança encontra meios para ser criativa e utilizar sua personalidade integral.

Brincar é descobrir as bondades da linguagem; é inventar novas histórias, é assistir à possibilidade humana de criar novos pulsaris, e isso é maravilhosamente prazeroso. Brincar é por a galopar as palavras, as mãos e os sonhos. Brincar é sonhar acordado; ainda mais: é arriscar-se a fazer do sonho um texto VISÍVEL. Um grande obstáculo para instrumentalizar um programa educativo em que a criança e seus jogos estejam no centro é a dificuldade que tem os professores para jogar. (Morales Ascencio,1995)

“Dizer que a educação é atividade irmã do brinquedo e da arte é denunciar a repressão, relembrar o paraíso perdido, anunciar a possibilidade da alegria, rejeitar as experiências fragmentadas, buscar a experiência perdida da cultura, dilacerada pela sistemática administração centralizada da vida que, em nome da eficácia, quer gerenciar todas as coisas”. (DUARTE, 2005, p. 13)

Sobre Artes PARTE 1

Algo sobre ARTES...

“Os gregos diziam que se maravilhar é o primeiro passo no caminho da sabedoria, e que quando deixamos de nos maravilhar, estamos em perigo de deixar de saber”. (GOMBRICH, p. 7)

A Moça Tecelã
Por Marina Colasanti

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Para pensar...
Como é o fazer/inventar da tecelã?
O que a tecelã precisava para realizar o desejo do seu fazer/ inventar?
Qual é o poder do tear?
O que os elementos do conto nos fazem pensar sobre as possibilidades artísticas?

21 de dez. de 2009

EIXO 2 ALFABETIZAÇÃO Parte 4

O que é LETRAMENTO?

Letramento pode ser definido como o processo de inserção e participação na cultura escrita. Trata-se de um processo que tem início quando a criança começa a conviver com as diferentes manifestações da escrita na sociedade (placas, rótulos, embalagens comerciais, revistas, etc.) e se prolonga por toda a vida, com a crescente possibilidade de participação nas práticas sociais que envolvem a língua escrita (leitura e redação de contratos, de livros científicos, de obras literárias, por exemplo).
O termo letramento foi criado, portanto, quando se passou a entender que, nas sociedades contemporâneas, é insuficiente o mero aprendizado das “primeiras letras”, e que integrar-se socialmente, hoje, envolve também “saber utilizar a língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos”. Essa nova palavra veio para designar “essa nova dimensão da entrada no mundo da escrita”, que se constitui de um “conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais” (cf. Batista, 2003). (...)
Considerando-se que os alfabetizandos vivem numa sociedade letrada, em que a língua escrita está presente de maneira visível e marcante nas atividades cotidianas, inevitavelmente eles terão contato com textos escritos e formularão hipóteses sobre sua utilidade, seu funcionamento, sua configuração. Excluir essa vivência da sala de aula, por um lado, pode ter o efeito de reduzir e artificializar o objeto de aprendizagem que é a escrita, possibilitando que os alunos desenvolvam concepções inadequadas e disposições negativas a respeito desse objeto. Por outro lado, deixar de explorar a relação extra-escolar dos alunos com a escrita significa perder oportunidades de conhecer e desenvolver experiências culturais ricas e importantes para a plena integração social e o exercício da cidadania.
MARIA DA GRAÇA COSTA VAL1

EIXO 2 ALFABETIZAÇÃO Parte 3

Para refletir

Alfabetização: acesso a um código ou acesso à leitura? - Magda Soares

Até recentemente foi consensual o sentido atribuído aos conceitos de analfabeto, analfabetismo, alfabetização: analfabeto - o que não sabe ler e escrever; analfabetismo - o estado ou condição de quem não sabe ler e escrever; alfabetização - o processo de ensinar a ler e a escrever.
Progressivamente - e particularmente ao longo da última década - vem-se revelando uma tendência a qualificar e precisar esses conceitos, ampliando seu significado. Assim, tanto na mídia quanto na literatura educacional, intensificam-se as discussões sobre um analfabetismo funcional, sobre o analfabeto funcional, multiplicam-se as críticas a uma alfabetização que, embora ensine a ler e a escrever, não habilita os indivíduos a fazer uso da leitura e da escrita nem lhes facilita o acesso ao material escrito.(...)
A alfabetização significando que a esta cabe não apenas ensinar a ler e a escrever, mas também desenvolver habilidades de uso social da leitura e da escrita e gosto pelo convívio com material escrito. Ao mesmo tempo, e como conseqüência, vai-se modificando a metodologia da alfabetização, passando a defender-se que essa se dê não por meio das tradicionais cartilhas, voltadas exclusivamente para a mecânica da leitura e da escrita, mas pelo convívio do alfabetizando com o material escrito que circula na sociedade, em diferentes gêneros e diferentes portadores. Como conseqüência, enfatiza-se cada vez mais a importância das bibliotecas públicas e escolares, do acesso ao livro, aos jornais, às revistas, da multiplicação de eventos que levem o alfabetizando à participação em práticas reais e não apenas escolares de leitura. Essa nova concepção de aprendizagem da leitura e da escrita é que faz surgir no vocabulário educacional o termo letramento, criado para designar o estado ou condição de um indivíduo que não só sabe ler e escrever - não só é alfabetizado - mas também sabe (e tem prazer em) exercer as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive - é letrado.
Entretanto, contraditoriamente, este novo conceito de aprendizagem da leitura, estreitamente relacionado com práticas de leitura, com a formação de um verdadeiro leitor, vem convivendo com a persistência do conceito restrito e tradicional de aprendizagem da leitura como a mera aquisição da tecnologia da escrita, como apenas formação de um decodificador da escrita. Um conceito para o qual parece ser suficiente que o indivíduo aprenda a decodificar rótulos em produtos de consumo, indicação de trajetos na lateral de ônibus, fichas de cadastro em empresas... (...)
Discute-se a questão exclusivamente no quadro de uma concepção de analfabetismo como o estado ou condição de quem não sabe ler e escrever, não mencionando em nenhum momento o acesso à leitura e a formação do leitor como objetivo central, não discutindo em nenhum momento as precárias condições de possibilidade de leitura propiciadas a uma população de 170 milhões de indivíduos a que apenas 2.008 livrarias dão acesso ao livro - uma livraria para cada 84.400 habitantes! em um país em que menos de um quarto das escolas possui biblioteca! Citam-se como iniciativas contra o analfabetismo dignas de menção apenas aqueles programas governamentais ou da sociedade civil voltados exclusivamente para ensinar rapidamente a ler e a escrever, omitindo aqueles outros que se voltam para formar leitores, em atividades de socialização do material escrito e de desenvolvimento de práticas de leitura. Não se percebe que de nada vale a aquisição da tecnologia do ler e do escrever se essa aquisição não vier acompanhada de programas que facilitem o acesso ao material escrito e incentivem a leitura e a escrita.
O que explicará essa convivência contraditória de uma concepção de alfabetização como formação de leitores com uma concepção de alfabetização como formação de meros decodificadores da língua escrita? Talvez a persistência desta última concepção tanto no senso comum, que se revela freqüentemente na mídia, quanto no senso político, que se revela em muitos dos programas de alfabetização, se possa explicar ideologicamente: à medida que se vai vencendo o analfabetismo absoluto, é conveniente que não se eleve muito o nível de leitura da população, o que poderia representar ameaça a uma estrutura social que privilegia alguns e subjuga outros - meramente saber ler e escrever não dá ao indivíduo a possibilidade de luta, enquanto tornar-se leitor é conquistar um poderoso instrumento de conscientização e de formação para a verdadeira cidadania. Enfatizando uma alfabetização entendida como mera aquisição da tecnologia do ler e do escrever mantém-se a desigualdade, ou melhor, criam-se novas formas de desigualdade: esta já não ocorre entre analfabetos e alfabetizados, como tradicionalmente, mas passa a ser entre letrados e iletrados, entre os que têm condições de acesso à leitura, os que se formam leitores, e os que apenas aprendem a ler, mas a quem se nega a oportunidade e o direito às práticas sociais de leitura.
Magda Soares é membro do Ceale - Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG e uma das mais respeitadas pesquisadoras da área de linguagem e educação do país. É autora do livro "Letramento: um tema em três gêneros, da Autêntica Editora Comunicação & Marketing.
(FONTE: http://www.leiabrasil.org.br/textos/visualizartexto.aspx?id=442)

EIXO 2 ALFABETIZAÇÃO Parte 2

ALFABETIZAÇÃO: Ação de ensinar/aprender a ler e a escrever.

LETRAMENTO: Estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita.

cultiva = dedica-se a atividades de leitura e escrita/ exerce = responde às demandas sociais de leitura e escrita


Letramento definido em um poema

O Que é Letramento?
Kate M. Chong

Letramento não é um gancho
em que se pendura cada som enunciado
não é um treinamento repetitivo
de uma habilidade
nem um martelo
quebrando blocos de gramática

Letramento é diversão
é leitura à luz de vela
ou lá fora, à luz do Sol

São notícias sobre o presidente
o tempo, os artistas da TV
e mesmo Mônica e Cebolinha
nos jornais de domingo

É uma receita de biscoito
uma lista de compras, recados colados na geladeira
um bilhete de amor
telegramas de parabéns e cartas
de velhos amigos

É viajar para países desconhecidos
sem deixar sua cama
é rir e chorar
com personagens, heróis e grandes amigos

É uma atlas do mundo
sinais de trânsito, caças ao tesouro,
manuais, instruções, guias
e orientações em bulas de remédios,
para que você não fique perdido

Letramento é, sobretudo,
um mapa do coração do homem,
um mapa de quem você é,
e de tudo que você pode ser

Referência Bibliográfica: SOARES, Magda. Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.

EIXO 2 ALFABETIZAÇÃO Parte 1

Algo sobre ALFABETIZAÇÃO e LETRAMENTO...

“Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de “alfabeto“. “Alfabeto“ é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem.”
Rubem Alves


Para começo de conversa...

1. O que a escrita representa?
2. Qual a estrutura do modo de representação da escrita?


FRAGMENTOS do Texto FORAM MUITOS, OS PROFESSORES
Bartolomeu Campos de Queirós

Minha mãe guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor-em-pedaços, baba-de-moça, casadinhos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordados, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto de sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’Albano, Tédio, O Beijo do Papai. Eu reparava em seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por decidir.
Meu pai, junto ao rádio na alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava o silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. Seu jeito me arranhava por não ser meu anseio me fazer herói ou mártir. Eu queria saber, mas sem perdê-lo. Lastimando a ausência de futuro, ele fechava o livro, reparava as horas e buscava o sono. Seu dia era pequeno para trabalhar por todos nós. E nos livros, eu percebia, estava escrito o já não mais possível a ele. Eu sabia irrealizável, sem querer nascer de novo.
Na pequena capela da praça morava uma imagem de sant’Ana. Minha irmã levava piedosos ramos de flores, colhidos na horta, e trocava pedidos balbuciados. Eu encarava a santa com seu livro aberto sobre os joelhos ensinando a Menina Maria. Eu espiava o livro de gesso, indagando o que a futura Mãe de Deus não sabia ainda. O que estava guardado em abençoado livro e que a Rainha desconhecia? Aproveitava as suspeitas e rezava por mim, pelas minhas desconfianças. Mesmo sabendo repetir o credo, o pai-nosso, a ave-maria, meu coração se aventurava a interrogar o Perfeito por me ofertar tanta incoerência para sobreviver.
Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas soletrando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciam insossos, pois constantemente, pedia a meu pai para “lhe tomar lições”. Meu pai negava por não necessitar mais de lições. Já trabalhava e amava. Minha mãe, propensa a justificar fracassos, elogiava o esforço do filho maior, o suposto responsável pela família em caso de desgraça, mesmo reconhecendo não serem os livros o seu caminho. Eu invejava o lugar de meu irmão estudando afluentes do Rio Amazonas, a rosa-dos-ventos, os pontos cardeais, as três caravelas. Eu sonhava rio, vento, direção e barco sem querer partir. E, se partir, deixar bilhete sobre o norte buscado. Se sufocado em desejos, eu vivia cheio de medo de minhas vontades virarem verdades.
Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folinha Mariana e lia as recomendações. Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Philippus, são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na possibilidade de o passado se repetir no futuro. Minha mãe, de soslaio, espiava minha avó e continuava sem anotar receita de olho-de-sogra em seu primeiro caderno.
Maria Turum, empregada antiga do meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava o tempo de chuva com comida de angu, carne moída e quiabo, sem consultar caderno de receitas. Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e, se, tossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã. Ao apertar com os dedos um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisava de mais caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupa para ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para corar os lençóis. Nunca notei interesse seu diante das paredes do meu avô. Ela parecia não pensar além da casa. Não havia horizonte lá fora. Só conhecia o mundo tocado pelos olhos. E em sua alma, eu compreendia, não cabia mais amor além daquele dividido entre nós e revelado na limpeza da casa, no carinho da cozinha, na roupa alvejada no varal.
Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugadas e fugas, casamentos traições, velórios, heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, machado - e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do destino de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando seus significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de pretexto.
Eu restava horas sem fim, de coração aflito, seduzido pelas histórias de amor, pelo desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro livro – as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço das palavras – facas de dois gumes. Meu avô desdizia verdades eternas com as mesmas palavras com que escreveram a Bíblia Sagrada: “A bondade de Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não cobrou; à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, um pingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espeto é de pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidade de negociar com as palavras, de buscar seus avessos, me atordoava e me seduzia.
Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. Também, coelho não usava ainda nem na Páscoa, ocasião em que se comungava coordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes nem grudar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
Mesmo assim, cada dia eu conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas paredes mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranqüilas suas aulas, e o maior encanto estava em meu avô cultivar as dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é uma bola besta sem eira nem beira”, eu desconfiava se estava dizendo ser a Terra redonda ou se a Terra era uma piada se tamanho. Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes ele me pegava esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longo, um parágrafo mais alto. Ele me apontava a cadeira. Eu buscava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino, desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”. Meu avô voltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu único e maior livro.
(...) Em minha casa ninguém atribuía importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre. “Menino, deixa de inventar histórias, você não sabe ler, nunca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurar serviço melhor pra fazer”.
Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. Comecei a dar razão ao meu irmão, já capaz de dirigir o caminhão assentado em um travesseiro de paina. Mas logo me veio uma idéia: quando entrar na escola, eu faço de conta que esqueci de tudo e começo a aprender de novo. “Uma mentirinha é um santo remédio para botar um ponto final em conversa fiada”, me ensinou me avô, coisa que comecei a praticar para encurtar perguntas e me livrar de incômodos. Havia pessoas que gostavam de indagar muito mais do que deviam.
(...) Fui escolhido por dona Maria Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel de seda. (...) Ela me emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não gostar mais de mim. Todo cuidado era pouco para não perder o seu amor.
(...) Encher o caderno com fileiras e fileiras de a, e, i, o , u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. (...) Eu lia cartazes, colava sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira vez as palavras. (...) A professora jamais soube do meu adiamento.
(...) Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora, que, de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitiria dúvidas.
Os cadernos das receitas de minha mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes do meu avô, o livro de sant’Ana, a mudez de Maria Turim, a fé viva de minha avó, a preguiça de meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido (...)

ABRAMOVICH, Fanny (Organização), Meu professor inesquecível: ensinamentos contados por alguns dos nossos melhores escritores. São Paulo, Editora Gente, 1997

20 de dez. de 2009

EIXO 1 LEITURA Para refletir...

O morador das palavras
Rubens da Cunha

“E se ele pudesse morar dentro das palavras? Começou morando na palavra cavalo, gostou de sua elegância paroxítona e desacentuada, de sua quase toda leveza. Ficou morando lá pouco tempo, porque cavalo é também palavra indócil, dada a galopes, a selvagerias. Viu que não podia morar em palavras que designassem animais. Elas absorvem a personalidade dos bichos, precisava de palavra estática e menos inconstante. Resolveu morar em árvore. Os primeiros dias foram de paz, palavra boa, cheias de vogais e erres curvos. E tinha os verdes: adorava-os. Depois foi cansando, cegando-se em verde. Monotonia. A sua nova casa não ia além do significado. Sempre fixa, o máximo que conseguia de loucura era vento esparso, acontecido nas madrugadas ou nos finais de tarde. A palavra árvore logo o entediou.

Mudou-se então para o pasto. Acreditava que palavra tão curta com significado tão gigante poderia ser um espaço agradável para se viver. Resolveu ficar, mesmo com medo diante de tanto verde. Estava ainda enjoado das verdolências, e pasto não conseguia ser de outra cor. Agüentou mais que na palavra árvore. Pasto é verde, mas tem amplidão, traz em si nenhum muro. Pasto sibila liberdade. Ainda assim, não era a casa ideal. Depois de muito procurar, urbanizou-se. Nada de distâncias, larguras. Foi morar em concreto, palavra dura, porém aberta, um tanto áspera, mas em dias violentos bastante segura. E nada de verdes. Pintou as paredes internas da palavra concreto de lilás e as externas de amarelo. A razão disse-lhe que não combinava: onde já se viu? O concreto ser lilás e amarelo? Pouco ligou. Estava morando em palavras, porque precisava ser racional? Além disto, já tinha residido em árvore e pasto, os dois eram verdes conforme a razão. Agora não! Queria concreto amarelo e lilás. Foram de sonhos os primeiros meses. Só que, depois, não tinha mais paredes para pintar, despintou cada uma delas, repintou tudo de novo, invertendo as cores. Cansou disso também.

Que agonia não encontrar palavra que seja boa moradia, palavra que o comporte inteiro, sem que ele se desespere para mudar novamente. Tinha escolhido apenas palavras concretas, resolveu partir para o abstrato. Pensou em viagem: comum demais. Esteve na porta de suicídio: trágica demais. Vasculhou saudade, paixão, amor, ódio: já muito habitadas, não estavam em bom estado de conservação.

Andava ao léu, sem palavra que lhe servisse de teto, quando, surgida do nada, viu a casa de sua vida, ali, exata, fluida, inteira como sempre desejou. Não precisou alterar, consertar, desmanchar coisa qualquer, apenas abriu a porta e entrou. Vive até hoje em exílio. Está confortável. Mudar de palavra é coisa esquecida” .

Eixo 1 LEITURA: Experimentando...


Para experimentar...

Concertos de leitura
Rubem Alves

Penso que, de tudo o que as escolas podem fazer com as crianças e os jovens, não há nada de importância maior que o ensino do prazer da leitura. Todos falam na importância de alfabetizar, saber transformar símbolos gráficos em palavras. Concordo. Mas isso não basta. É preciso que o ato de ler dê prazer. As escolas produzem, anualmente, milhares de pessoas com habilidade de ler mas que, vida afora, não vão ler um livro sequer. Acredito piamente no dito do evangelho: "No princípio está a Palavra…". É pela palavra que se entra no mundo humano.

Tive a felicidade de aprender, muito cedo, a amar os livros. Lembro-me com enorme carinho do O livro de Lili, primeiro livro que li. "Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce. Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce." Nunca me esqueci dessa primeira lição. Ficou gravada tão fundo dentro de mim que, faz uns meses, ao escrever o livro infantil A menina, a gaiola e a bicicleta1 a história me foi ditada (poesia e literatura são sempre ditadas; elas vêm de outro mundo) com ritmo preciso da primeira lição de O livro de Lili.

O segundo livro foi minha grande aventura, vôo solo, sozinho, no mundo das letras: A loja de brinquedos2. Era fantástica a experiência de sozinho, ir andando pela floresta de letras e vendo um mundo. Quem não lê é cego. Só vê o que os olhos vêem. Quem lê, ao contrário, tem muitos milhares de olhos: todos os olhos daqueles que escreveram. A leitura me deu alegria, mas a história me deu tristeza. Tanto assim que, 55 anos depois, eu escrevi um outro, A loja de brinquedos, para corrigir a tristeza do primeiro.

Aprendi a ler. Mas isso não bastava. Faltava-me o domínio da técnica que faz da leitura algo suave como o vôo de um urubu ou deslizante como um patim no gelo. Foi dona Iva — não sei se ela ainda vive — quem me ensinou que ler pode ser delicioso como voar ou como patinar. Ela lia para nós. Não era para aprender nada. Não havia provas sobre os livros lidos. Ela lia para que tivéssemos o prazer dos livros. Era pura alegria. Poliana, 3 Heidi,4 Viagem ao céu,5 O saci.6 Ninguém faltava, ninguém piscava. A voz de dona Iva nos introduziu num mundo encantado. O tempo passava rápido demais. Era com tristeza que víamos a professora fechar o livro.

A gente era pobre. Distrações não havia. Os jovens de hoje se sentem miseráveis se não podem viajar nas férias. Eu nunca viajei. Viagem, na melhor das possibilidades, era para a casa de algum parente. A gente ficava era em casa mesmo, com um tempo preguiçoso e vazio à nossa frente.
Que fazer com o tempo? Meu pai entrou como sócio para um "clube do livro”. Todo mês chegava um livro novo. Eram uns livros feios — brochuras de papel jornal, as páginas vinham grudadas — que a gente tinha que ir abrindo com uma faca à medida que lia. Isso me irritava porque interrompia o ritmo da leitura. Como eu não tinha outra coisa para fazer e desejando ter os poderes da professora, tornei-me um devorador de livros. Os livros do clube do livro eram literaturas adultas. Mas para mim não fazia diferença. Ler um livro que eu não entendia era como viajar por uma terra cuja língua me era desconhecida: perdia muita coisa, mas, nos intervalos das incompreensões, havia os cenários. Tudo me espantava.

As razões por que as pessoas não gostam de ler, eu as descobri acidentalmente muitos anos atrás. Uma aluna foi à minha sala e me disse: "Encontrei um poema lindo!". Em seguida disse a primeira linha. Fiquei contente porque era um de meus favoritos. Aí ela resolveu lê-lo inteiro.
Foi o horror. Foi nesse momento que compreendi. Imagine uma valsa de Chopin, por exemplo, a vulgarmente chamada "do minuto". Peço que o pianista Alexander Brailowiski a execute. Os dedos correm rápidos sobre as teclas, deslizando, subindo, descendo. É uma brincadeira, um riso. Aí eu pego a mesma partitura e peço que um pianeiro a execute. As notas são as mesmas. Mas a valsa fica um horror: tropeções, notas erradas, arritmias, confusões. O que a gente deseja é que ele pare.

Pois a leitura é igual à música. Para que a leitura dê prazer é preciso que quem lê domine a técnica de ler. A leitura não dá prazer quando o leitor é igual ao pianeiro: sabem juntar as letras, dizer o que significam — mas não têm o domínio da técnica. O pianista dominou a técnica do piano quando
não precisa pensar nos dedos e nas notas: ele só pensa na música. O leitor dominou a técnica da leitura quando não precisa pensar em letras e palavras: só pensa nos mundos que saem delas; quando ler é o mesmo que viajar.

E o feitiço da leitura continua me espantando. Faz uns anos um amigo rico me convidou para passar uns dias no apartamento dele em Cabo Frio. Aceitei alegre, mas ele logo me advertiu: "Vão também cinco adolescentes…". Senti um calafrio. E tratei de me precaver. Fui a uma casa de armas, isto é, uma livraria, escolhi uma arma adequada, uma versão simplificada da Odisséia, 7 de Homero, comprei-a e viajei, pronto para o combate. Primeiro dia, praia, almoço, modorra, sesta.

Depois da sesta, aquela situação de não saber o que fazer. Foi então que eu, valendo-me do fato de que eles não me conheciam, e falando com a autoridade de um sargento, disse: "Ei, vocês aí. Venham até a sala que eu quero lhes mostrar uma coisa!". Eles obedeceram sem protestar.
Aí, comecei a leitura. Não demorou muito. Todos eles estavam em transe. Daí para frente foi aquela delícia, eles atrás de mim pedindo que continuasse a leitura.

Ensina-se, nas escolas, muita coisa que a gente nunca vai usar, depois, na vida inteira. Fui obrigado a aprender muita coisa que não era necessária, que eu poderia ter aprendido depois, quando e se a ocasião e sua necessidade o exigissem. É como ensinar a arte de velejar a quem mora no alto das montanhas… Nunca usei seno ou logaritmo, nunca tive oportunidade de usar meus conhecimentos sobre as causas da Guerra dos Cem Anos, nunca tive de empregar os saberes da genética para determinar a prole resultante do cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos, nunca houve ocasião que eu me valesse dos saberes sobre sulfetos. Mas aquela experiência infantil, a professora nos lendo literatura, isso mudou minha vida. Ao ler — acho que ela nem sabia disso — ela estava me dando a chave de abrir o mundo.

Há concertos de música. Por que não concertos de leitura? Imagino uma situação impensável: o adolescente se prepara para sair com a namorada, e a mãe lhe pergunta: "Aonde é que você vai?".
E ele responde: "Vou a um concerto de leitura. Hoje, no teatro, vai ser lido o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Por que é que você não vai também com o pai?". Aí, pai e mãe, envergonhados, desligam o Jornal Nacional e vão se aprontar…

EIXO 1 Leitura


Algo sobre LEITURA...
“A leitura do mundo, precede a leitura da palavra” Paulo Freire

Qual é o desafio?

O desafio é formar praticantes de leitura e da escrita e não apenas sujeitos que possam “decifrar” o sistema de escrita. É – já o disse – formar leitores que saberão escolher o material escrito adequado para buscar a solução de problemas que devem enfrentar e não alunos capazes apenas de oralizar um texto selecionado por outro. È formar seres humanos críticos, capazes de ler entrelinhas e de assumir uma posição própria frente à mantida, explicita ou implicitamente, pelos autores dos textos com os quais interagem. Em vez de persistir em formar indivíduos dependentes da letra do texto e da autoridade de outros.
O desafio é formar pessoas desejosas de embrenhar-se em outros mundos possíveis que a literatura nos oferece, dispostas a identificar-se em outros mundos possíveis que a literatura nos oferece, dispostas a identificar-se com o semelhante ou a solidarizar-se com o diferente e capazes de apreciar a qualidade literária.assumir esse desafio significa abandonar as atividades mecânicas e desprovidas de sentido, que levam as crianças a se distanciar da leitura por considerá-la uma mera obrigação escolar, significa também incorporar situações em que ler determinados materiais seja imprescindível para o desenvolvimento dos projetos que se estejam levando a cabo, ou –e isto é igualmente importante – que produzam o prazer que é inerente ao contato com textos verdadeiros e valiosos.

(DELIA LERNER – Ler e escrever na escola – o real, o possível e o necessário)

A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER
Paulo Freire

“(...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra.
(...) A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.
(...) Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia - e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e revivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós - à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.
(...) Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros - o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas núvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos.”

A importância do Registro...

A importância do registro...

O CADERNO
Toquinho e Vinicius de Moraes
Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco até o be-a-ba
Em todos os desenhos coloridos vou estar
A casa, a montanha, duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel
Sou eu que vou ser seu colega,
Seus problemas ajudar a resolver
te acompanhar nas provas bimestrais
você vai ver
Serei de você confidente fiel,
Se seu pranto molhar meu papel
Sou eu que vou ser seu amigo,
Vou lhe dar abrigo,
se você quiser
Quando surgirem seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel
O que está escrito em mim
Comigo ficará guardado, se lhe dá prazer
A vida segue sempre em frente,
o que se há de fazer
Só peço a você um favor,
se puder:
Não me esqueça num canto qualquer

“Escrevo porque à medida que escrevo vou me entendendo
E entendendo o que quero dizer, entendo o que posso fazer.
Escrevo porque sinto necessidade de aprofundar as coisas,
de vê-las como realmente são...”
Clarice Lispector

Para que fazer o registro?
Para desenvolver o importante instrumento de documentar o processo pessoal de formação e a possibilidade preciosa de refletir sobre a prática, com a ajuda da escrita, um incrível recurso de aprendizagem, inclusive para nós educadores!!!

Fragmentos..















Algumas breves reflexões ...

“Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-las para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”
Rubem Alves


"Educar

É um exercício
De imortalidade.
De alguma forma
Continuamos a viver
Naqueles cujos olhos
Aprenderam a ver o mundo
Pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre jamais..."
RUBEM ALVES

EDUCAÇÃO BANCÁRIA:
Na visão bancária da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber (...). Educação como o ato de depositar, de transferir, de transmitir, valores e conhecimentos.
(Paulo Freire – Pedagogia do Oprimido)

ESTUDO ERRADO
“Quase tudo que aprendi,
amanhã eu já esqueci
Decorei, copiei, memorizei,
mas não entendi
Quase tudo que aprendi,
amanhã eu já esqueci
Decorei, copiei, memorizei,
mas não entendi
Decoreba: esse é o método de ensino
Eles me tratam como ameba
e assim eu não raciocino
Não aprendo as causas e conseqüências
só decoro os fatos
Desse jeito até história fica chato
Mas os velhos me disseram
que o "porque" é o segredo
Então quando eu num entendo nada,
eu levanto o dedo
Porque eu quero usar a mente pra ficar inteligente
Eu sei que ainda não sou gente grande,
mas eu já sou gente
E sei que o estudo é uma coisa boa
O problema é que sem motivação a gente enjoa”
(Gabriel Pensador)

Um tanto de registro...

Encontro de (trans)formação por Juliana Noronha

Malas cheias de sonhos,
Corações repletos de amor
Mãos desejosas de repartir
Aquilo que a vida ensinou

Truffa, Caróis e Jujuba
Alegria, amizade, doçura
Muito pra ensinar
Mais ainda a aprender
Muito mais do que esperávamos receber

Uma viagem que entra pra história
Que marca a vida
Que aquece o coração
Mais pelo amor das pessoas
Que pelo calor do sertão

Patos
Crianças, professoras
Céu azul, sol e vento
Esperança
Em cada olhar, em cada momento.

Convite


Cem anos de perdão - Clarice Lispector


Encontro de formação com as educadoras da ONG Operação Resgate- junho/2009
Patos/Paraíba/ Brasil


Texto apreciado durante a sensibilização do primeiro momento do encontro.


Primeiras impressões...
“Pensar é agir sobre o objeto e transformá-lo”. Piaget

1.Para sentir...
Cem Anos de Perdão - Clarice Lispector
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. "Aquele branco é meu." "Não, eu já disse que os brancos são meus." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores. Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira, que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume. Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo. Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos. E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa. O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho. Foi tão bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora. Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho.

Acordando Palavras


"Houve o tempo do sonho. No escuro das noites, todos sonharam palavras. Houve o tempo do acordar. Na luz das manhãs, todos acordaram palavras. Depois veio a coragem de presentear. Em cartas lacradas viajaram secretas palavras".

Bartolomeu Campos de Queirós