20 de dez. de 2009

EIXO 1 LEITURA Para refletir...

O morador das palavras
Rubens da Cunha

“E se ele pudesse morar dentro das palavras? Começou morando na palavra cavalo, gostou de sua elegância paroxítona e desacentuada, de sua quase toda leveza. Ficou morando lá pouco tempo, porque cavalo é também palavra indócil, dada a galopes, a selvagerias. Viu que não podia morar em palavras que designassem animais. Elas absorvem a personalidade dos bichos, precisava de palavra estática e menos inconstante. Resolveu morar em árvore. Os primeiros dias foram de paz, palavra boa, cheias de vogais e erres curvos. E tinha os verdes: adorava-os. Depois foi cansando, cegando-se em verde. Monotonia. A sua nova casa não ia além do significado. Sempre fixa, o máximo que conseguia de loucura era vento esparso, acontecido nas madrugadas ou nos finais de tarde. A palavra árvore logo o entediou.

Mudou-se então para o pasto. Acreditava que palavra tão curta com significado tão gigante poderia ser um espaço agradável para se viver. Resolveu ficar, mesmo com medo diante de tanto verde. Estava ainda enjoado das verdolências, e pasto não conseguia ser de outra cor. Agüentou mais que na palavra árvore. Pasto é verde, mas tem amplidão, traz em si nenhum muro. Pasto sibila liberdade. Ainda assim, não era a casa ideal. Depois de muito procurar, urbanizou-se. Nada de distâncias, larguras. Foi morar em concreto, palavra dura, porém aberta, um tanto áspera, mas em dias violentos bastante segura. E nada de verdes. Pintou as paredes internas da palavra concreto de lilás e as externas de amarelo. A razão disse-lhe que não combinava: onde já se viu? O concreto ser lilás e amarelo? Pouco ligou. Estava morando em palavras, porque precisava ser racional? Além disto, já tinha residido em árvore e pasto, os dois eram verdes conforme a razão. Agora não! Queria concreto amarelo e lilás. Foram de sonhos os primeiros meses. Só que, depois, não tinha mais paredes para pintar, despintou cada uma delas, repintou tudo de novo, invertendo as cores. Cansou disso também.

Que agonia não encontrar palavra que seja boa moradia, palavra que o comporte inteiro, sem que ele se desespere para mudar novamente. Tinha escolhido apenas palavras concretas, resolveu partir para o abstrato. Pensou em viagem: comum demais. Esteve na porta de suicídio: trágica demais. Vasculhou saudade, paixão, amor, ódio: já muito habitadas, não estavam em bom estado de conservação.

Andava ao léu, sem palavra que lhe servisse de teto, quando, surgida do nada, viu a casa de sua vida, ali, exata, fluida, inteira como sempre desejou. Não precisou alterar, consertar, desmanchar coisa qualquer, apenas abriu a porta e entrou. Vive até hoje em exílio. Está confortável. Mudar de palavra é coisa esquecida” .

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Acorde palavras você também