28 de ago. de 2010

Alfabetização/Educação/Ler - José Pacheco

Alfabetização

O “Aurélio” diz-nos ser “acto, efeito, modo, ou processo de alfabetizar (-se)”.
No tempo da “tia tapa o pote”
Aos dois anos de idade, a Alice lançou-se na senda das descobertas do linguarejar. E eu, avô babado não me cansava de espevitar a pimpolha. Espantava-me e divertia-me com as suas generalizações. Encorajava-a, incitando-a ao diálogo, desafiava a sua criatividade com socráticas subtilezas:

- A Alice é a netinha do avô?

- É.

- Sabes quem é a netinha do avô?

- Sabo!

Talvez revendo-se num outro lado de um freudiano espelho – eu sei lá! – o certo é que a Alice me retorquia numa lógica implacável e zurzidora de ortodoxias gramaticais.

- O que é isto? – perguntava-lhe, apontando as mãozinhas do irmão Marcos.

- Ito é as mões do minino!

Reaprendi a gramática do bom senso, compassivamente anotando os absurdos que a Alice, sem o saber, denunciava, os mesmos absurdos que os adultos de então não conseguiam identificar. Reaprendi com os sábios arabescos linguísticos da minha neta muito daquilo que eu tive de desaprender quando, um dia, quis ser professor. E vieram à memória episódios que ouvi contar, quando ainda exercia essa maravilhosa profissão.

Parece que foi ontem, e já lá vão tantos anos! Era no tempo do hegemónico método analítico-sintético por alguns chamado fónico, Um tempo distante, em que o “p” e o “t” eram aprendidos através da repetição soletrada de frases de alto gabarito intelectual do género: “a tia tapa o pote”, “a tia é tua”, “é a tua pua”.

Nesse tempo, como na actualidade, algum pai, em seu perfeito juízo, se lembraria de repreender o filho, no momento em que este balbuciasse a primeira palavra? Estou a ver o pequeno a exclamar “papá!”, e o zeloso progenitor a corrigi-lo de imediato:

- Não se diz papá! Diz comigo: “um pê e um a… pa; mais um pê e um a… pá”. E, agora, diz tudo pegado: “papá”. Assim é que está bem!

O leitor considerará ridícula tal descrição. Tem toda a razão, mas era assim que se aprendia a ler nas escolas daquele tempo. Tudo passava pela soletração, apesar de alguns episódios terem propiciado suficientes pretextos para interpelar absurdos e efectivar uma revisão metodológica.

Recordemos o daquela professora que, pretendendo ensinar o ditongo nasal “ão” e o seu plural “ões”, exibiu uma gravura, a apontou e disse para a turma:

- Ora vamos lá! Quero toda a gente a ler esta palavrinha!

E toda a turma, num coro estridente, soletrou:

- Por…co!!!

- Não é porco. É leitão!!! – gritou a mestra.

Sem comentários, passemos a um outro episódio exemplar. Numa escolinha da Ilha da Madeira, a professora pretendia ensinar a consoante “b”. Desenhou no quadro negro um tubérculo mal amanhado a que os insulares dão o nome de “semelha”. Porém, a mestra escreveu por debaixo da tosca figura a palavra “batata”.

- Vá lá, menina! Ora lê!

A aluna fitou demoradamente o desenho. Depois, voltou o olhar para a impaciente mestra.

- Estás espera de quê? Levanta-te e lê!

A pequena levantou-se, mas deitou os olhos ao chão.

- Ó minha grandessíssima burra! Tu não sabes que estamos a dar o “b”? Vê-se logo que não estudaste a lição em casa!

A miúda tinha estudado a lição. E, por isso mesmo, hesitava. Porque a bota não dava com a perdigota, como adiante iremos ver…

- Nunca comeste disto? – insistiu a professora, apontando para aquilo que, para um adulto alfabetizado, deveria ser a representação de uma batata - Nem assim, minha burra?

Abra-se um justo parêntesis para referir que, no século passado, expressões como “ó minha burra”, “ó minha besta”, “ó meu anormal”, eram ternamente utilizados por alguns professores como recursos pedagógicos, à míngua de conhecimento de elementares conceitos como o de “reforço positivo”, que tinham ficado confinados aos testes de Psicologia da Educação parcimoniosamente copiados e esquecidos. Mas, porque provas e respectivas cábulas são coisas do passado da formação de professores, retomemos a descrição do episódio.

A concretização do plano da aula (para quem não seja desse tempo, diga-se que os “planos de aula” eram também apetrechos usados nas escolas, no século XX), estava comprometido. A professora havia destinado cinco minutos para a “motivação” e outros cinco para a “introdução do novo vocábulo”.

Só mais um parêntesis para dizer que não poderei aqui explicar o contido entre aspas, dada a inverosimilhança com que estes artefactos da proto-pedagogia se apresentam no nosso tempo. Retomemos, pois, a narrativa.

A mestra aprimorou-se na criatividade posta na invectiva:

- Ó minha parva, tu senta-te, que já me deste cabo do plano, e já nem te estou a ver bem!

A “parva” sentou-se aliviada.

- Já vi que dali não há-de sair nada. Diz lá tu, ó Toninho! O que é que está aqui escrito?

O Toninho era o “inteligente” da turma. Era um miúdo grave e delicado. O ternurento diminutivo usado pela professora ficava-lhe a matar. Também lhe assentava como uma luva o cognome de “Mete Nojo”, que o Nelo das Fajãs havia inventado e que a turma, unanimemente, adoptou.

Filho do senhor engenheiro agrónomo, seria evidente para a mestra que o Toninho reconhecesse o tubérculo e soletrasse a preceito “ba…ta…ta”.

- Diz lá, Toninho, o que aqui está escrito.

- Semelha, senhora professora. – disse o Toninho.

Foi então que a professora nada e criada no Portugal Continental se apercebeu de que, na véspera, havia almoçado semelhas com bacalhau, pensando comer batatas.


Educação

Vem do latim educare (ou será educere?...), que significa instruir, formar.

“Há gente que nasce longe de casa”

Num aeroporto afectado pela “crise”, eu deveria efectuar um voo de conexão e tentava explicar o óbvio: Minha senhora, repare que eu já tenho cartão de embarque, não preciso de vir para esta fila.

Se lhe disseram para vir para esta fila, é porque tem de vir – nesse diálogo de surdos, a funcionária voltou-me as costas, sem me dar tempo a replicar.

Meia hora decorrida e muita impaciência acumulada, cheguei ao balcão. Mostrei o cartão de embarque:

“O senhor não precisava de vir aqui para esta fila. E, agora, já fechou o chek in do seu voo – disse-me, sem me olhar. Telefonou, teclou, entregou-me um novo cartão de embarque para um voo que partiria três horas depois. Cabisbaixa, disse-me: Foi o máximo que pude fazer… Em silêncio, afastei-me.

Enquanto aguardei o tardio voo, observei os passos em volta: gente cochilando, gente reclamando, gente apática, ou resignada, tal como eu… Tive tempo suficiente para meditar, “transgredindo a ordem do superficial” e concluir que, nos grandes aglomerados humanos, as pessoas se submetem a uma forçada convivência, toleram o outro sem o aceitar, suportam um “aturai-vos uns aos outros” num incómodo mal disfarçado.

La Rochelle disse que “a cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo quanto povoa a solidão – a cidade é o vazio”. Isso mesmo: um vazio com raízes que eu busco esclarecer. Inevitavelmente, a minha cultura profissional isolou as raízes de uma instituição geradora de vazios: chamou a Escola à colação. As escolas onde as funcionárias do aeroporto e os seus clientes se formaram eram arquipélagos de solidões povoados por rituais vazios de significado.

Educar é assumir responsabilidade social, solidarizar-se eticamente. Somos marcados pela incompletude, geneticamente sociais e geneticamente históricos, porque, como diria Walon ou Freire, criamos vínculos. A arte de conviver (viver com) exige uma atitude de abertura, o reconhecimento do outro e o respeito pela pessoa do outro. Mas onde se poderá aprender essa arte? Na Escola? Na Família? Na televisão? Na internet?

A Educação do Homem percorre caminhos sinuosos. Antes de ser escolarizada, a criança já esteve passivamente exposta a muitos milhares de horas de televisão, sem agir criticamente sobre as mensagens, sem discernimento para se proteger de programações imbecis. Forma-se o solitário adulto espectador no vazio da indiferença: “Militares americanos bombardearam uma aldeia afegã. As bombas visavam matar talibans, mas assassinaram crianças. Para os militares o raid aéreo foi um sucesso, fundamentando: “Quem nos garante que esses meninos não viriam a ser perigosos talibans?”

O Sartre estava certo de que, se não somos responsáveis pelo que fizeram de nós, somos responsáveis por aquilo que fizermos com aquilo que fizeram de nós. E eu opto por pensar nos professores que eu conheço, que já vão trocando uma profissão solitária por uma profissão solidária. E não se trata de uma mera troca de uma consoante por outra consoante. Trata-se de uma profunda mudança cultural. O primeiro passo dessa reconversão consiste em os professores se sentarem à volta de uma mesa, ou na relva de um parque, para se transformarem numa equipe. Um projecto faz-se com pessoas, privilegiando laços afectivos. Com pessoas conciliadas consigo e com os seus pares.

Com esta reconfortante reflexão, aquieto-me. E o tempo de espera pelo voo fica mais breve, mais suportável. Embora saiba que ainda há muita gente distante de si própria! Como diria a Maria, “às vezes, há gente que nasce longe de casa...”


Ler

Não confundir com a decifração de símbolos ou o papaguear palavras!

Saber ler

Durante muitos anos, o compositor Lopes Graça foi perseguido pelos esbirros da polícia política, só por ser homem de escrever verdades. Numa das suas polémicas intervenções escritas, travou-se de razões com um tal Coelho, músico protegido pela Ditadura de Salazar. Publicou um opúsculo escrito de tal modo que chegou aos leitores sem ficar exposto aos cortes do “lápis azul”. Esse opúsculo foi um êxito editorial, até ao momento em que a polícia política invadiu as instalações da editora e apreendeu o que restava dos exemplares por vender.

Como era uso nessa época de privação das liberdades, o título da obra teria de despistar os meirinhos da censura. Na capa do livro estava escrito “A Caça aos Coelhos”. E foram milhares os caçadores que o compraram…

Em Portugal, jornais publicaram rankings de escolas, na cretina atitude de pretender comparar escolas com diferentes características, públicos diversos e situadas em regiões díspares. Publiquei um artigo, num jornal diário de grande tiragem, denunciando a farsa dos rankings. A minha intenção era a de defender a dignidade das escolas que tinham ficado situadas nos últimos lugares da lista. Quando o meu artigo foi publicado, recebi de muitos professores cartas de elogio e incentivo.

Fiz publicar o mesmo artigo no jornal da minha terra como gesto de solidariedade para com uma escola que conheço e que estava situada nos últimos lugares do ranking. Decorridos alguns dias, alguns professores dessa escola passavam por mim e nem sequer um bom-dia me davam. Estranhei. Semanas depois, compreendi o que se passava: a directora dessa escola dizia que eu tinha publicado um artigo atacando a sua escola. A senhora directora leu o que não estava escrito no artigo. E foi mais longe, movendo-me um autêntico processo de intenções.

Há professores que não lêem. Outros lêem e não entendem o que lêem. E bem pior do que não saber ler é utilizar o que não se entende como arma de arremesso, fazendo crer a outros (que não leram, ou não sabem ler) intenções que o autor não teve. Uma sociedade de “grau zero de literacia” (não é só no Brasil que o analfabetismo funcional prospera), é terreno fértil para que indivíduos sem escrúpulos se recusem a discutir a realidade, a partir de outro ponto de vista que não seja o seu.

Ler é diferente de compreender. Ler pressupõe o domínio do vocabulário utilizado, da estrutura sintáctica do material escrito, do conteúdo. A atitude do leitor e os seus preconceitos, ou seu interesse relativamente ao texto lido, influenciam a interpretação. Ser leitor pressupõe ser capaz de distinguir entre factos e opiniões, captar o significado literal, as asserções directas, as asserções paralelas, as paráfrases… O domínio da linguagem pode ser afectado pela rigidez de ideias, por carência de capacidade discriminativa. Ser letrado não significa apenas saber ler e escrever, mas ser funcionalmente letrado.

As nossas escolas dispõem de excelentes profissionais, mas albergam, também, docentes cuja iliteracia nos deve inquietar. Enquanto professor de universidade, eu tive a ingrata surpresa de verificar que muitos alunos, que pretendiam ser professores (e que, hoje, o são!) eram incapazes de alinhavar uma ideia, de redigir um parágrafo sem erros ortográficos, de interpretar um texto de complexidade maior.

De que serve ocultar a realidade? Ter um canudo não faz de um licenciado uma pessoa culta. É preciso admitir uma dolorosa realidade: num país de “doutores”, nem só entre o povo simples a ignorância prospera – também há professores ignorantes.

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