28 de ago. de 2010

ERA UMA VEZ...

ERA UMA VEZ...As histórias e suas contribuições




Por Renata Truffa

Um convite. “Era uma vez...”. Um outro tempo se dá.

É o momento de expor o tempo e o lugar, como diz Von Franz (2007), “a terra de ninguém” do inconsciente coletivo .

Era é um verbo do pretérito imperfeito. Regina Machado (2004) lembra que as crianças brincam utilizando-se deste verbo: “Faz de conta que eu era a mãe e você o pai, tá?”. Os artistas também, como nesta frase de Chico Buarque: “Agora eu era herói”!

Quando se diz: “Há um tempo atrás eu era mais tímida”, o “era” é cronológico, referindo-se a uma questão do passado. Mas, o “era” do “Era uma vez” não é cronológico. É um tempo da imaginação, da fantasia, da criação.

Regina Machado comenta:

“Quando ouvimos um conto – adultos ou crianças -, temos uma experiência singular, única, que particulariza para cada um de nós, no instante da narração, uma construção imaginativa que se organiza fora do tempo da história cotidiana, no tempo do ‘era’. Tal experiência diz respeito à universalidade do ser humano e, ao mesmo tempo, à experiência pessoal como parte dessa universalidade...A história só existe quando é contada ou lida e se atualiza para cada ouvinte ou leitor. ‘Era uma vez’ quer dizer que a singularidade do momento da narração unifica o passado mítico – fora do tempo – com o presente único – no tempo – daquela pessoa que a escuta e a presentifica. É a história dessa pessoa que se conta para ela por meio do relato universal”. (MACHADO, 2004, p. 23)

O ouvinte e/ou leitor possa a estar na história quando ela é contada. Ele passa, em seu imaginário, a estar na história, ele “era” a história.

Alessandra Giordano comenta:

“Que verbo é este: ERA? Fui é passado, Sou é presente, Serei é futuro, e ERA? O que é? Fico pensando que ERA é o tempo do instante que jamais se repete. Este instante (imperfeito que é perfeito) não será jamais o próximo. É sempre único e está fora da seqüência temporal e espacial, pois a voz que fala o ERA UMA VEZ é sempre outra...E como diz o poeta: ‘nada do que foi será do jeito que já foi um dia”. (GIORDANO, 2007, p. 36)

“Era uma vez...” coloca o ouvinte em prontidão para adentrar em um outro tempo. Um tempo sem tempo cronológico. Um tempo interno.

Desde os tempos primitivos a história é parte da vida do homem. Os estudos antropológicos demonstram que sempre houve a presença de um contador de histórias, que, ao contar histórias, muitas das vezes, tinha como objetivo perpetuar a cultura daquele povo. Portanto, elas – as histórias – surgiram muito antes da psicologia e das artes, como afirma Clarissa Pinkola Estes:

“As histórias são muito mais antigas do que a arte e a psicologia, e serão sempre as mais velhas nessa comparação, não importa quanto tempo passe”. (ESTES, 1994, p.35)

Elas foram ganhando outras funções. São excelente recurso educativo, propiciam a reflexão e estimulam a transformação.

Para as histórias, as palavras. O poeta Edmond Vandercammen disse que uma palavra pode ser uma aurora, um abrigo seguro. Gaston Bachelard, em seu livro A poética do devaneio, escreve poeticamente:

“Sou, com efeito, um sonhador de palavras, um sonhador de palavras escritas. Acredito estar lendo. Uma palavra me interrompe. Abandono a página. As sílabas da palavra começam a se agitar. Acentos tônicos começam a inverter-se. A palavra abandona o seu sentido, como uma sobrecarga demasiado pesada que impede o sonhar. As palavras assumem então outros significados, como se tivessem o direito de ser jovens. E as palavras se vão, buscando, nas brenhas do vocabulário, novas companhias, más companhias. Quantos conflitos menores não é necessário resolver quando se passa do devaneio erradio ao vocabulário racional”. (BACHELARD, 2001, p. 17)

As palavras, através das histórias, adquirem novos e únicos significados. Histórias valorizam a individualidade, para cada ouvinte e/ou leitor a história é uma. Mônica Guttmann, esclarece a este respeito:

“As palavras podem ser pensadas, escritas, ditas e ouvidas, mas os significados e as imagens que elas adquirem são únicos para cada indivíduo. Palavras nomeiam sentimentos, emoções, pensamentos, que geram outras palavras, outras imagens”. (GUTTMANN, 2004, p. 257)

O educador que utiliza-se de histórias poderá tornar mais prazerosa e produtiva a aprendizagem da leitura e escrita. Rubem Alves define-se como um contador de histórias e, sabemos, é ele um grande educador:

“Eu sou um contador de estórias. Descobri-me um contador de estórias contando estórias para a minha filha pequena. As estórias se formam da mesma maneira como se forma a pérola dentro de um ostra. Ostras felizes não fazem pérolas. É preciso que um grão de areia entre em sua carne mole. O grão de areia a torna uma ostra infeliz. Para livrar-se da dor do grão de areia, a ostra pacientemente o envolve com uma substância lisa, sem arestas e redonda: a pérola. E é assim também que nascem as estórias, como as pérolas. Minha filha nasceu com um defeito facial. Eu contava estórias para transformar a dor em beleza. Mas, para isso, era necessário que eu tivesse poderes de feiticeiro. Estórias são rituais mágicos...Ao terminar de contar uma história, minha filha me perguntava sempre: ‘Papai, essa estória aconteceu de verdade?’ E eu não podia lhe dar a resposta. A minha resposta seria demais para a cabecinha de uma criança. Minha resposta teria sido: ‘Não. Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre....” (ALVES, 2005, p. 134)

O contato com a arte, e dentro da arte, a poesia, a literatura, os contos de fada, os mitos ajudam no desenvolvimento moral e intelectual. John Naisbitt apresenta uma carta que Charles Darwin escreveu no fim de sua vida:

“Até meus 30 anos ou mais, a poesia proporcionou-me grande prazer. Mas agora faz muitos anos que não suporto ler nenhuma linha sequer de poesia. Minha mente parece ter se tornado uma máquina de processar consideráveis coleções de fatos, transformando-os em leis gerais. Se eu tivesse que viver minha vida de novo, adotaria a regra de ler um pouco de poesia e ouvir um pouco de música várias vezes todas as semanas. A perda desses gostos é uma perda de felicidade, e pode ser prejudicial ao intelecto e, mais provavelmente, ao caráter moral, debilitando a parte emocional de nossa natureza” (NAISBITT, 2007, 269) .

A carta de Darwin demonstra o valor das artes, das letras, palavras, poesias, histórias na educação do homem. Educadores contadores de histórias têm a possibilidade de estimularem a educação integral da criança e, juntamente com isto, sua autonomia.

A carta escrita por Charles Darwin e sua biografia encontram-se no site: http://pages.britishlibrary.net/charles.darwin.

Inconsciente coletivo: Segundo Jung “o inconsciente coletivo (...) como herança imemorial de possibilidades de representação, não é individual, mas comum a todos os homens (...), e constitui a verdadeira base do psiquismo individual”(Jung, 1987, p.15).

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Rubem. Um céu numa flor silvestre. A beleza em todas as coisas. Campinas: Verus, 2005.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CIORNAI, Selma (org). Percursos em arteterapia – Volume 1. São Paulo: Summus, 2005

ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

GIORDANO, Alessandra. Contar histórias. Um recurso arte-terapêutico de transformação e cura. São Paulo: Artes Médicas, 2007.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

MACHADO, Regina. Acordais. Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo, DCL, 2004.

NAISBITT, John. O líder do futuro. Rio de Janeiro: Sextante, 2007.

VON FRANZ, Marie-Louise. A interpretação dos contos de fadas. Rio de Janeiro. Achiamé, 2007.

SUGESTÃO DE LIVROS ALÉM DA BIBLIOGRAFIA ACIMA:

ANDERSEN, Christian Hans. Os contos de Andersen. São Paulo: Paulus Editora, 2003.

BORJA, Maria Isabel (org); VASSALO, M. (org). O livro dos sentimentos. Crônicas, contos e poemas para jogar com as emoções. Rio de Janeiro: Guarda Chuva, 2006.

BONAVENTURE, Jette. O que conta um conto. São Paulo: Paulinas, 1992.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. 24. ed. São Paulo, Palas Athenat, 2006.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. 11. ed. São Paulo, Pensamento, 1995.

DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos. A educação (do) sensível. 3. ed. Curitiba: Criar, 2001.

ESTES, Clarissa Pinkola. Contos do Irmãos Grimm. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

FRIEDMAN, Adriana. O universo simbólico da criança. Olhares sensíveis para a infância. Petrópolis: Vozes, 2005.

FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MACHADO, Regina. Acordais. Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo, DCL, 2004.

OAKLANDER, Violet. Descobrindo crianças. A abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. 14. ed. São Paulo: Summus, 1980.

VON FRANZ, Marie-Louise. O feminino nos contos de fadas. Petrópolis. Vozes, 1995.

VON FRANZ, Marie-Louise. A interpretação dos contos de fadas. Rio de Janeiro. Achiamé, 1981.

PACHECO, José. Para Alice, com amor. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

READ, Herbert. A redenção do robô. Meu encontro com a educação através da arte. 3.ed. São Paulo: Summus, 1986.

READ, Herbert. A Educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SORSY, Inno, MATOS, Gyslaine Avelar. O ofício do contador de histórias. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2001.

KAST, Verena. A ansiedade e formas de lidar com ela nos contos de fada. São Paulo: Paulus, 2006.

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